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PESQUISA CIRCENSE - ENTREVISTAS COM ARTISTAS TRANS CIRCENSES
Tenho realizado doutorado pesquisando sobre pessoas trans e circo, aqui deposito algumas das entrevistas que tenho realizado, para que possamos juntes fomentar, pensar, articular dinâmicas que temos vivido dentro desse contexto:
Chuck
Eu sou Chuck, eu trabalho com o circo agora e as formações que eu tenho em circo elas são tudo de extensão, assim, de projetos, né? Tipo, quando eu comecei no circo eu fazia.. Eu tava na escola, então eu não sabia que eu podia ser artista, tipo, a minha família ela é bem... Ai, tradicional de direito, votou no Bolsonaro, desse jeito.. E aí eu nunca imaginava, nem passava na minha cabeça que eu podia fazer uma formação em arte, então eu comecei a fazer psicologia, fiz um ano e percebi que não fazia sentido nenhum, larguei antes de terminar o ano, na verdade. E aí eu fui na louca, assim, quero trabalhar com o circo, e daí eu só larguei tudo que na época era a faculdade e, tipo, joguei.. Ah, é bem hippie, joguei pro universo e falei, “eu preciso de algo” e me veio um trabalho lá na Bahia, assim.. Tipo, bem doido, bem aleatório num hotel que me chamaram e eu fui trabalhar lá. E daí eu percebi que eu não tava fazendo formação nenhuma e que eu queria muito aprender mais sobre, mas ao mesmo tempo eu não via muitos lugares possíveis, assim, né? Tipo, sabendo que não tem faculdade de circo e também, não sei se eu acredito muito nessa como única instituição, na verdade eu não acredito. E aí eu fui buscando como eu poderia me formar, então acho que as formações vieram bem de livre, assim tipo, autônomo, buscando várias fontes, né? Dentro daquilo que eu gostava, que na época era contorção e aéreos.
Eu fiz também projeto de extensã.. Eu fiz uma formação online do projeto de extensão da Federal de Curitiba, da UFPR que era do Cirteses. Também fiz uma formação de profes do Circocan, eu acho que é tipo as únicas formações que eu posso dar nome de formação só que isso é muito pouco perto de todo o conhecimento que eu já busquei fora, então eu sinto que a minha formação no circo vai muito mais dentro da comunidade de aprender junto, assim e de pesquisar sozinha.
Sim, eu comecei com 15 anos a fazer circo, né? E aí quando eu entrei na psico mais ou menos nessa época eu também comecei a sair mais de casa, porque antes eu não saía muito, assim.. Aí eu comecei a ir nas festinhas e trabalhar em festinha, então eu comecei a trabalhar com performance em festa eletrônica, assim. E daí a primeira vez que eu apresentei, eu já percebi que era isso que eu queria fazer da vida tipo, eu apresentei a primeira vez e eu falei eu vou largar a psico, eu não quero fazer isso da minha vida, eu tô perdendo tempo. E daí eu já fiquei com isso, só que veio junto também com toda a pira que é trabalhar em festa, né? E começar a usar coisas, usar um monte de drogas. E aí eu também percebi que eu não queria trabalhar desse jeito porque a performance tava se perdendo. O lugar do circo na minha vida tava se perdendo, assim.. Junto com todas as coisas que vêm de trabalhar à noite. E aí eu também tava querendo muito que isso parasse, assim.. Então essa pira de me chamarem no hotel na Bahia foi muito uma salvação que veio de algum lugar distante, assim.. Porque eu consegui largar várias coisas por causa disso, tipo.
E aí lá era um resort, quatro estrelas, cinco estrelas em Trancoso e a gente morava lá, então tipo, a gente fazia tudo lá, né? Tinha casa, comida, trabalhava também de maneira muito abusiva, assim, muito absurda. Oficialmente a gente trabalhava seis horas por dia com o circo e era muito legal, era com o trapézio voador que eu já fazia também e apresentando. Só que a gente tinha muitas horas que não contavam como trabalho que a gente tinha que ficar fazendo interação com os hóspedes, então, tipo, a gente não podia almoçar sozinhe e nem jantar, a gente tinha que almoçar e jantar com os hóspedes e, tipo, a galera entrava lá, a galera que ia pra lá já ia com essa pira, assim de, tipo, estar com as pessoas que trabalham também “Nossa, que legal, vão ser amiguinhos de quem trabalha lá” como se viesse no mesmo lugar, sabe?
E foi uma experiência massa pra juntar dinheiro porque eu era jovem, mas, tipo, os seis meses que eu passei lá, assim, eu passei falando “Meu, eu não tô fazendo nada que eu concordo”, tá divertido pra caralho, tipo enfim, né? Comia e bebia com a galera todos os dias, não gastava nada então eu aproveito pra juntar uma grana e é até por causa disso que eu consigo viver de circo hoje, assim, porque, tipo, eu não me sustento em Floripa, assim.. eu me sustento com o dinheiro que eu guardei há mil anos atrás. Tipo, é muito foda, assim.. mas é isso, eu tô fazendo o que eu acredito, de maneira autônoma. Não tô trabalhando tanto pra burgues, igual eu trabalhava lá, tô conseguindo pesquisar, né e estudar dentro das coisas que eu tenho interesse e vontade.. Mas, é isso.
Sim. É difícil ficar num foco só, né.. Contar uma história pontual.. Que eu trabalho com o circo desde os 17, faz 9 anos já, que daí eu já performava, mas muito sem conhecimento, assim, muito do sentir mesmo, de fazer o que eu já fazia. Eu entrei na ginástica é ritmica muito nova, assim, e eu competia, então pra mim era a base artística que eu tinha também. E, é isso, faz 9 anos, eu comecei a performar, depois eu fui pra esse resort, quando eu voltei, eu já comecei a dar aula ajudando as outras profis. E daí eu ficava, tipo, ajudando na aula das crianças e também acompanhando, fiquei uns meses acompanhando na escola que eu comecei a fazer lá em Curitiba, a Atricirco. Depois de um tempo que eu tava acompanhando as profis, eu comecei a dar aula também, mas eu comecei a dar aula porque era o trabalho que tinha pra eu ganhar dinheiro mesmo, eu não tinha vontade de dar aula, assim.. Eu tinha aquela ideia de que eu ia ser artista até a hora que meu corpo esgotasse, daí eu ia dar aula, sabe? Um plano bem curto de vida artística mesmo, bem triste. Mas acho que depois de vários anos eu entendi que não é isso, assim, também. Aí eu comecei também a querer fazer coisas com o meu corpo pra que o meu corpo aguentasse até o fim da minha vida e não que eu esgotasse de uma vez, que é muito a pira que a ginástica tem, que algumas tradições fortes da ginástica tem, né? Vamos gastar esse corpo e usar ele até que ele não fique mais usável, daí vira profe. Daí eu entrei com essa ideia meio errada na cabeça, assim.. Mas acho que fui percebendo que não era por aí.
Climão.. Ai que difícil! Eu acho que agora, eu não sei se eu vejo muito o meu corpo dentro do ambiente circense.. Tipo.. Algo nunca fez sentido sempre, sobre a minha existência no circo, o meu ser, eu sentia que eu reproduzia muitas coisas que eu não entendia o que era e que hoje eu entendo que é, tipo, reproduzir o estereótipo de gênero dentro do circo mesmo, reproduzir a mulher cis, a cisgeneridade dentro disso. E eu nunca entendia, eu ficava assim, “gente, mas que grupo que eu sou?” Aquelas coisas, né, existenciais, tipo.. eu não sou essa galera, eu também não sou essa, também não sou essa, e não tinha nenhuma pessoa trans que eu conhecia dentro do circo, nunca.. Então eu também não sabia pra onde ir, assim, é isso de não ter referência mesmo, de não ver o que que eu era. Aí na pandemia que teve muitas coisas online e teve o “Brilhe Circo” e teve o “Encuentro” na mesma época, eu participei deles e eu falei, “Nossa, é aí que eu entro, eu acho”. É nesse circo que faz sentido eu estar, os temas que as pessoas falam são outros e não necessariamente fica falando sobre a pira do gênero, mas os nossos problemas são outros, problemáticas e enfim, né. E aí eu me enxerguei dentro do circo a partir disso. Talvez o meu corpo esteja em algum lugar aí, mas vivendo a vida real, assim, fora da bolha é muito esquisito. Eu sinto que eu tô numa bolha de circo que eu escolhi estar agora, em geral são as pessoas, a minha pequena rede de pessoas trans.
Mas é muito difícil, né dizer o que que é circo e o que que é circo pra nós também, e entender que talvez o que a gente acha normal as pessoas consideram dentro de “esquisito”, de “Freak”. Porque que me chamam pra fazer Freak Show? Eu não faço nada de muito esquisito, sabe? Uma questão bem específica, que tem acontecido. Eu não sei, acho que o meu corpo orbita nesse lugar de esquisito dentro do circo, talvez. E isso é engraçado, eu acho engraçado. É bem problemático, mas bem engraçado também.. Não sei.. Como que eu me vejo ou como que os outros veem, né?
Preciso refletir um segundo sobre isso.. Eu acho difícil de... Com certeza eu vi mudanças assim nos últimos anos e... Como eu tô dentro da onda, assim, aquelas olhando.. olhando a praia. Como eu tô dentro da onda eu acho difícil de dizer se eu que mudei totalmente de ambiente ou se o ambiente que mudou, e que tá mudando. Como eu saí desse extremo de uma escola de circo onde as pessoas pagavam pra fazer circo, em geral pessoas cis e brancas, no máximo bissexual e vim pra cá e eu só fiquei aqui porque eu encontrei as minhas pessoas, as pessoas que eu podia tá junto e me entender como gente, né? Eu não sei se eu só enxerguei um mundo que eu não enxergava antes que eu não via ou se existem mudanças grandes e significativas, assim.
Eu imagino que sim, que tenha tido mudança, até pela própria existência desses festivais e encontros que eu não sabia antes, né. O “Encuentro LGBT”, o “Brilhe”. Eram eventos que antes eu não sabia da existência se tinha, então, eu acho que eu tô vendo muita gente também, por exemplo, querendo fazer drag também, que também é do circo. E talvez até o fato de ter mais pessoas contratando a gente e nos dando liberdade pra usar dessa temática, talvez, realmente as coisas estejam mudando. Não sei, não tenho muita referência de como era antes, eu acho que antes eu tava numa bolha muito isolada, assim, do circo, que era o circo de escola, circo recreativo mesmo. Acho que vindo desse lugar de profe eu nunca me senti muito parte de comunidade de artista, só de profe de escola, eu não me sinto muito dentro, assim de nenhuma comunidade.
Então eu vou começar por isso. Eu acho que o que mais me interessa no circo assim, que me deu vontade de entrar nisso, foi a pira de poder explorar limites do corpo, assim. E tipo... É isso, assim, né? Foi um lugar que eu vi liberdade de expressar o corpo de maneira não competitiva e coisas esquisitas também, assim, que tipo, não entram em categorias que têm jurados, né? Então essa pira de fazer várias coisas que não têm relação juntas, é uma coisa que me encantou no circo e me deu vontade de estudar sobre. E, meu, é muito difícil achar referência nisso, porque as referências nisso elas não estão nos lugares, assim, tipo, não estão no YouTube, não estão acessíveis pra todo mundo.
A gente nem sabe onde achar, porque realmente é essa arte mesmo que acontece, que até hoje eu me vejo fazendo, que ela é meio... Eu odeio falar que é “underground”, eu acho horrível esse tema, mas tipo, ela é meio fora assim da circulação midiática mesmo, e, tipo, quem sabe faz, quem sabe tá junto, quem sabe assiste. E aí isso, eu acho que as referências vão mudando nos anos, assim, atualmente, referência de companhia.. o momento da biscoitagem, né? Tipo, a Ci Fundo do Mundo pra mim é uma referência, foi realmente a primeira Cia trans que eu vi, e, tipo, quando eu vi online o número do casamento pra mim foi, tipo, muito bom, assim.
E eu acho que pra além do circo eu tenho muita referência de burlesco também, tem uma galera em Curitiba que faz um movimento de drag burlesco junto, e pra mim isso também quando eu descobri fez sentido dentro do circo, que foi, a galera que tá pensando o gênero também que não tá exatamente dentro do circo, mas que eu posso fazer o que eu gosto de fazer fisicamente dentro desse outro movimento.
Acho que talvez por isso que eu não me enxergo tão dentro, assim, é difícil, porque eu não encontro muito movimentos de circo que me representem, mas agora sim! Agora que eu tô vendo também esses movimentos LGBT que em geral tem pessoas trans, eu me sinto.. eu vejo aí referências de movimentos, não tanto de... É..
Mais técnicas daí. Tem as referências de técnicas assim, né, da Erika Stoppel, e aí tem no site da Fedec, tem muitos, muitos, muitos conteúdos visuais e bibliográficos de técnica, mas é tudo sobre técnica específica, corda, trapézio, acro não sei das quantas.
E também tem o livro da Cia Fundo Mundo agora, que está disponível para PDF, eu já baixei.
Ai, ai.. Eu tô passando por uma crise bem grande, assim, nesse ano pra seguir no circo, na verdade. Tipo, em partes eu acho que ela é uma arte que tá menos burocratizada, assim, então, eu posso meter muitos loucos e ninguém... É isso, eu posso meter muitos loucos dentro do circo, eu sinto que essa é uma questão. Vai ter menos gente falando que é circo do que gente falando que é dança, por exemplo. Apesar de ter essas pessoas, eu sei que eu tenho também mais aval de pessoas dizendo, “não, isso pode ser circo”, por ter essa comunidade.
Ai, acho que em geral também ter essa comunidade, que eu falei que eu não me vejo, mas que também é a rede de apoio, é uma coisa que me motiva, assim. Eu tava bem desmotivade com o circo até eu ver que tem circo LGBT, por exemplo. E eu não achava que eu fosse seguir, então, perceber que, na verdade, tem mais gente metendo vários loucos, dá pra eu seguir também, tipo... Porque não é meter um louco sem embasamento nenhum, né, é meter um louco de desafiar mesmo as regras, os padrões que dizem que deve ser uma arte prática, assim, né, uma coisa, não sei, entregável, assim, comercial mesmo.
Acho que atualmente é isso, e também o fato de dar aula. Eu gosto muito de dar aula hoje, é muito bom. Quando eu tô desmotivada, em geral, depois das aulas eu saio muito feliz por perceber também que a gente mexe muito com a vida das pessoas, né? E aí, tipo, nas minhas aulas de trapézio eu tenho várias alunas que têm medo de altura, e elas foram fazer trapézio pra superar esse medo de altura. E aí, depois de um ano, um ano e meio fazendo a aula, elas fazem umas coisas que no começo eram muito absurdas. E é muito gostoso de sentir isso, que, tá, em nenhum momento eu tô fazendo terapia com ninguém, essa não é a minha formação, isso não é a minha vontade também, mas esse conhecimento que as pessoas vão tendo do corpo delas dentro de uma aula de algo desafiador, faz com que elas desbloqueiem muitas coisas, assim, né? Então, acho que é isso.
Depende de quais convenções e festivais. Tipo, eu acho que, em especial, a intenção talvez seja unir as pessoas, né, e fazer, trocar conhecimentos e fazer arte junto, mas quem são as pessoas que participam das convenções e festivais também, né? Os festivais pagos, assim, convenções pagas não são pra todo mundo, então, eu não sei se acaba unindo pessoas que já estão unidas, porque já estão em certos lugares de privilégio, assim, ou se realmente fazem o papel de unir.
A primeira convenção que eu fui foi a de Floripa, no passado, eu nunca tive como pagar outras convenções, ou eu nunca tive como ir, porque eu sempre dei aula, e pra eu continuar tendo emprego e continuar trabalhando com circo, eu não podia largar minhas aulas pra ir em convenções, então, eu nunca senti que eu era parte dessa comunidade, em específico, da convenção e dos festivais, e aí eu fico pensando que se tivessem mais festivais e convenções gratuitas, por exemplo, ou acessíveis, ou com temáticas também que me interessasse, talvez eu me sentisse parte antes, porque eu fui perceber mesmo que é uma coisa legal estar em conjunto com esses festivais que tiveram online LGBT, apoiados por leis de incentivo também, né, aí eu vi que me fortaleceu muito, assim, e recentemente os últimos que eu fui fizeram com que eu me sentisse parte pela primeira vez de uma comunidade dentro do circo e me deram muito aval pra fazer as coisas que eu acredito. Tenho vontade de fazer também, né, de misturar o fetiche, de misturar o burlesco, e de estar com pessoas, né, quando tu não vê mais sentido, sempre tem mais gente não vendo sentido também, você fica não vendo sentindo junto, e às vezes disso sai algo. Talvez esse seja o ideal, do papel da convenção. O que eu acho que pode funcionar, mas ainda falta.. ainda falta condições pra que as pessoas possam realmente estar lá.
Eu acho que em Floripa é bem complexo isso, em geral aqui, desde que eu vim morar faz um ano e meio, eu vou pro meu primeiro job essa semana, porque eu nunca achei os valores justos, assim, e em geral eu vejo que as pessoas oferecem os cachês de performance aqui, o mesmo tanto que eu comecei a trabalhar em Curitiba, em festa eletrônica de pessoas que não tinham conhecimento nenhum do que era circo, há nove anos atrás, então, eu nunca quis me submeter a isso. Ninguém devia trabalhar por esse preço, especialmente em Floripa, que é muito mais caro do que Curitiba, por exemplo, lá eu recebia um cachê baixo e eu tava começando.. Eu tava numa festa que não era muito lucrativa, eram outros artistas autônomos que faziam.. Claro, a gata que fazia festa tinha família rica, então se ela saía no preju, meio que tava tudo bem, mas ainda recebia, e aí quando eu vim pra cá eu resolvi não trabalhar com perfo, porque eu sabia que não ia cobrir meus gastos de estudos, figurino, que seja.. Tudas coisas que a gente gasta quando vai apresentar.
E aí eu acho que é bem complexo aqui, viver de apresentar. Não é uma coisa que eu faço nem que eu imagino que seja possível fazer, e todo mundo que eu converso não vive só disso, em geral aqui quem trabalha com arte trabalha também com outras coisas, e eu acho isso muito triste. Eu consigo viver aqui do circo porque eu dou aula, e eu dou aula na Casa Ventana, que é um lugar muito massa, não é um lugar que a gente paga aluguel pra dar aula lá, então, a Lili não cobra aluguel da gente, da Casa Ventana. A gente paga uma porcentagem pra casa que é pra pagar a equipe da gestão, que eu sou parte também, e pra pagar as contas que a casa tem, então, é só por isso que eu consigo viver aqui, porque daí eu tenho alunos frequentes, mas também isso eu não tenho como saber, porque a galera um mês faz aula, outro mês não faz, não é um compromisso, né, igual a faculdade, igual outras coisas, que as pessoas sempre vão pagar e sempre vão fazer, então, é bem flutuante, eu nunca sei quanto é que eu vou receber, eu nunca sei se eu vou pagar minhas contas, mas de algum jeito tá indo. Mas eu nunca consegui ter a liberdade de parar de dar aula, que é uma coisa que eu tenho muito desejo, mas eu sei que se eu tenho contas a pagar, eu não posso me dar esse luxo, tipo, só apresentar era uma coisa que eu tinha muito desejo, mas não é real, assim, aqui, agora.
Agora eu tô conseguindo até apresentar mais por causa do fetiche, também. A galera agora tá rolando também essa cena de Shibari em Floripa, crescendo, parece, né, boatos.. Porque eu também cheguei aqui faz um ano e meio, mas boatos que antes não tinha, que antes era tudo mato, e agora tá crescendo bastante essa cena de Shibari, assim, aqui também, muita gente querendo amarrar, muita gente querendo assistir apresentação. Tem um lugar que a gente performa sempre no centro, então, tem um público já pra isso, e aí, dentro disso, eu comecei a botar também os fetiches dentro do circo, e aí tem gente que chama.. Nem sabe o que eu vou fazer, mas gosta disso, né.
Acho que é o Shibari e outras.. e agulha também, o povo gosta de assistir, então, também trazendo as narrativas, dentro dos personagens que a gente imagina, dentro do circo, e que fazem esse cruzamento com o fetiche, assim, aí talvez dentro disso caiba o Freak.
O meu desejo é ser hippie da montanha, mas eu não tenho esse privilégio. Tipo, eu acho que o desejo é, além de conseguir viver dignamente, é poder desejar, é poder sonhar.
Eu acho que o desejo era poder ter escolha, eu não sinto que eu tenho muitas escolhas. Eu gostaria de ter, além de pagar contas, ter dinheiro e tempo sobrando, não ter pressão sobre o que eu vou produzir, eu sinto que não sobra.. Quando tem tempo não tem dinheiro, quando tem dinheiro não tem tempo, não tem tempo porque a gente recebe pouco, então, se eu não tenho tempo pra pesquisar o que eu quero apresentar, eu nunca sinto que eu tô chegando nos lugares que eu poderia chegar se eu tivesse esses privilégios, então o desejo é, além de viver dignamente, poder escolher. mas, não é o jeito que eu enxergo também.
Então, esses são os desejos, mas eu imagino ainda a gente patinando por algum tempo pra ver mínimos melhoras. Não sei, é difícil não imaginar mais do mesmo, sabe? Tipo, parece que a gente tenta fazer algumas mudanças sociais, mas eu sinto que eu tô sempre muito ocupade pra ter projeções do futuro, pra entender sobre como, pra onde a gente tá indo, não sinto que eu sei o suficiente também sobre da onde a gente tava pra poder dizer pra onde a gente vai, sabe?
E também acho que essa falta de arquivos sobre as nossas histórias faz com que a gente não veja um futuro. Eu não sei pra onde eu vou, assim, pra onde o circo tá indo.
Ao ao mesmo tempo, assim, acho que a gente tá podendo mais ser a gente, né? Com a internet, tudo. Com a velocidade que as informações correm, talvez agora seja mais fácil ser trans do que era antes, por exemplo, né? Então, acho que a partir de agora a gente consegue talvez imaginar um futuro de como a gente vai ser e criar novas histórias, mas até então eu sinto que eu tava muito, eu estou ainda na pira de entender como sobreviver nesse corpo, como viver nesse corpo, né? Porque sobreviver, eu sobrevi a vida inteira, agora eu quero saber como viver. Aí, não sei, talvez a nossa história também esteja aí, né? Sobrevivemos, existimos, como que a gente vai viver e criar coisa pra além disso de só, de só sobreviver nesse negócio, né? A gente ainda tá preso nesse lugar de como existirmos, né? Então, eu só quero sair disso logo, assim, eu espero que a gente saia disso logo, mas por enquanto essa é a névoa, assim, forte, eu acho. Não sei se eu consigo pensar, hein?
Ramon Drago
Drago e Biana faleceram dia 16/07/2023 em um acidente de carro, saindo da 21ª Convenção Brasileira de Malabarismo e Circo, indo em direção a Chapada dos Veadeiros. A entrevista feita com Drago, aconteceu dia 15/07/2023, aqui fica a lembrança.
Meu nome é Ramon Drago, multiartista não-binárie, né, sou de Porto Alegre, tenho 28 anos. Vivi
esse processo de transição recentemente, assim, dessa descoberta, porque eu primeiro permeei entre o feminino e, tipo, dei muito de cara com mulheres que eram feministas e que falavam que eu nunca ia poder me reconhecer como uma mulher.
Isso gerou todo um bug na minha mente, e aí eu comecei a conhecer pessoas não-bináries e entender a fluidez que permeava dentro disso, né, e faço circo acho que desde 2016, né, desde festivais, undergrounds até eventos e festas.
Minha convenção é uma primeira, a primeira convenção que eu venho, né, e tô muito feliz assim, né, também de estar abrindo esse espaço não-binárie dentro do rolê do circo, sabe, tipo, eu acho que é toda uma nova linguagem também que se abre, né.
Ba, eu atuo por aí desde 2016, né, e ele começou pra mim como uma forma bem intuitiva, eu sentia no meu coração uma vontade de querer aprender a fazer uma malabares, coisas assim, e aí eu fui pra Bahia, fui lá pro Vale do Capão, né, e aí eu tava bem hippie assim, pegando carona, aquela coisa, né, circense, né, e aí eu conheci uma família numa estrada que me deu carona até o Vale do Capão e eles moravam na frente do circo, né, e aí eu fiquei lá na casa deles um tempo e ia sempre ali no circo, fazia uma aula de tecido, trapézio, até que teve o carnaval, né, e aí foi a primeira vez que eu acendi fogo, sabe, fiz uma malabar de fogo, uma apresentação na rua mesmo, com arte de rua, né, porque eu acho que também esse rolê do circo a gente tem que ver que pessoas trans sempre acabam caindo pra uma linguagem de ter que vender pra alguma coisa mais underground ou, tipo, às vezes cai mais pra aquela ideia do freak show, né, sabe, e eu adorei porque essa convenção me mostrou que a gente pode permear por todos os espaços, todas as noites e não só, por exemplo, numa noite LGBT, mas sim também uma noite de gala, sabe, vários outros locais assim, né?
Isso já é o BO do rolê, sabe, tipo, foi bem triste, na real, pra mim aqui, tipo, várias pessoas, eu falava sobre o pronome, já era uma pauta de início de conversa que eu abria quando eu conhecia alguém, né, porque os pronomes que eu usava era elu ou delu.
Muitas vezes eu ouvia, nem entendia o que que era isso, tem muita gente que nem sabe o que que é não-binaridade, senti talvez muito uma falta de uma roda de conversa dentro da convenção sobre transições, gêneros, pronomes, sabe, pras pessoas que estão aqui, que são cis, poder entender as formas de se comunicar ou começar a ver as outras pessoas também, né, e não só caindo nesse padrão cisgênero, né. Então foi bem difícil, muita gente eu falei, mesmo assim, não respeitava meus pronomes, ficou me chamando de ele, ele, e aí, tipo, eu também me tirei desse lugar de ficar tendo que relembrar toda vez, eu ignorava isso, e seia de perto, assim, sabe, sim, é foda, né.
Ah, eu ando percebendo bastante mudanças, assim, e principalmente mais do coletivo de pessoas trans, assim, que estão entendendo o quanto a gente pode se unir e fazer essa força ser maior e reverberar nesses espaços, sabe, e eu vejo que isso cada vez mais tá ficando muito mais potente, assim, de tipo, vamos fazer? vamos fazer, sabe, ocupar esses lugares, assim.. e acho
que é o que mais ando vendo, assim, de mudança, né, tipo, e também uma parada é os próprios, tipo, os produtores, eventos pararem de sair daquela consumição tão padrão, sabe, de tipo, abrirem, então, mais o leque pra essa diversidade, sabe, de números também.
Ah, vulcânica, em primeiro lugar, maravilhosa, sempre pra mim já foi, já te acompanhava pelas redes sociais, assim, mas tu é uma pessoa que me inspira muito, tipo, tem o Omar, que é lá de Porto Alegre, que é uma pessoa trans que faz Tai Chi, saca? Tem Toto, não sei se tu conhece, é uma galera trans lá de Porto Alegre que tá movendo o circo, sabe? até recentemente a gente fez um rolê chamado Circo Queer, que foi um circo de rua que a gente apresentou só com pessoas LGBTQIAPN+ , né?
Foi babado, e tipo assim, no meio de uma praça, tipo, só pessoas padrões e a gente meteu num freakzão, sabe? tipo, eu botei uma lente toda preta, sabe, a galera também trabalhou permeando nessa estética, assim, sabe, bafo, foi babado, bafo.
Pior que não, isso realmente eu acho que é algo muito inovador, e assim, até pra isso que tu tá buscando da tua pesquisa, eu acho importantíssimo, sabe, principalmente porque tu pra mim, eu acho que pra muitas outras pessoas trans, já é uma referência que tem esse espaço e que movimenta, então, ter isso pautado numa escrita oficializa mais toda essa nossa existência, pra não ser uma coisa que passou em vão, mas que passou, permeou e deixou coisas, né? Sim, é isso, né?
Eu acho que o que me motiva é essa abertura de poder expressar, tipo, a nossa arte, a nossa existência, seja ela por um malabar, uma dança, uma poesia, eu acho que esse espaço aberto que a gente tem pra poder fazer isso e, sei lá, se desenvolver como ser, né? Acho que isso é o que mais me move, assim, tipo, e desses trabalhos coletivos, assim, principalmente com pessoas trans, que eu vejo que me dão acalentes, assim, no coração, saca? Porque imagina se não fosse vocês aqui no rolê, vai eu ficar bem perdides, assim, a maioria é pessoas cis, é boy, é todo esse rolê, sabe? Então, tipo, ver a galera também ali buscando, fazendo, isso também acaba me motivando, sabe? Pra acreditar que não, não é só eu que tô sozinha aqui querendo ocupar esse espaço, tem outras pessoas, isso pra mim é uma rede de apoio, assim, né?
Ah, eu acho que é bem importante, eu acho que ainda a sociedade é muito conservadora em vários aspectos, né? Eu acho que talvez a convenção, às vezes, acaba tendo que se adaptar também a isso, que é foda, né? Tanto que teve na última que deu um babado, né? Rolou um beijo gay, aí o vereador viu, enfim, todo um BO, que não era pra acontecer, sabe? Tipo, então, eu acho que é uma questão de, tipo, as convenções também começarem a trazer esse diálogo pras outras pessoas de fora sobre esse rolê, assim, sabe? De, tipo, outros gêneros, outras orientações sexuais que permeiam ali e usam da arte como uma forma de performance, né?
É bem difícil, né? Bem difícil. Tipo, assim, é o que eu te falei, não é todos os locais que compram a nossa performance, a nossa arte, tipo, ou é a convenção, ou festival underground, ou algumas outras festas, né? Mas, tipo, trabalhos mais padrões, tipo shopping, de natal, essas coisas, é bem difícil as questões de contratação e tal, sabe?
Uau, essa pergunta é forte. Ah, eu imagino, tipo, cada pessoa podendo receber bem também pelo seu trabalho, porque é um trabalho, é uma dedicação, né? E abrindo esse espaço cada vez mais pra diversidade, pras pessoas dissidentes, poder ocupar esses lugares em todos os tipos de noite, né? Não só especificamente a do tema LGBTQIAP+, né? Mas em todos os espaços, assim.
É isso. Ai, amor! Que honra! Ai, sério, fiquei mais fã ainda agora, né?
Lui Castanho
Eu sou o Lui Castanho, recentemente me formei em produção cultural, graduação e já trabalhava como produtor cultural antes, mas antes disso já trabalhava como circense também. Minha formação principal no circo é de acrobacia aérea e depois eu fiz escola de palhaço e atualmente tenho brincado com as cesárias e outras tantas aí que se abrem.
Eu comecei com o circo, a treinar foi em 2012, treinar intensamente, porque eu me apaixonei muito, muito, muito por circo. Aí no final do primeiro ano de treino eu já comecei a pegar alguns trabalhos, teve um período que eu dei uma pausa de uns dois, um ano ou dois, e em 2015 eu retomei com a escola de palhaço e desde então sem parar.
Então, babado. Essa história de como começar, como parar e como voltar tem muita relação com a transgeneridade e com o espaço que eu ocupo no circo. Eu comecei antes da transição a fazer circo, então eu era uma menina dos aéreos e os trabalhos que eu comecei a pegar tinham a ver duas vertentes, um era professora de criança e a outra era que era o que estava rolando mais, era apresentar em festas, em alguns eventos empresariais e tudo mais.
E aí eu comecei a transição hormonal, comecei a tomar testosterona e aí o meu corpo foi se modificando no meu caso muito rapidamente, e aí eu fui perdendo esses trabalhos que eu tinha, tanto os de educação quanto os de evento, porque nitidamente eu era, os eventos que eu era aérealista, eu era a garotinha bonita ou a garota perigosa, e aí o meu corpo não se encaixava mais, por um corpo cheio de pelo, perdendo as curvas femininas, e ao mesmo tempo eu também não me encaixava no padrão masculino, que é o cara fortão, que é o garoto que vai salvar a mocinha, e aí esse foi o momento que eu me frustrei muito e que eu abandonei o circo, eu fiquei muito chateado, e aí eu só retomei através da palhaçaria, que foi numa outra cidade, uma escola, morava em Curitiba, e aí eu fiz essa escola de palhaços em Florianópolis e aí eu já me propus desde o princípio de falar que eu era trans e que se o pessoal de lá não aceitasse eu desistia, mas se que rolasse eu ia investir tudo que eu pudesse em circo, porque eu amava muito, eu amo muito, pra ver o que que rolava, então é isso, eu sinto que hoje em dia é muito massa ter conhecido e conhecer outras pessoas trans no circo, e não só outras pessoas trans, mas outras pessoas com corpos que não são padrões assim, pra gente poder criar outras referências, porque a referência principal ainda é a cisgenderidade branca, magra, é isso, heterossexual.
Sim, várias mudanças, isso é muito legal. Quando eu comecei, no ambiente que eu tava ali inserido também, né, que não era, não tinha tantos contatos a nível nacional, mas era, tinha questões de machismo muito evidentes e pouquíssimo espaço para falar disso mesmo enquanto mulher cis, assim.. transgeneridade, meu Deus do céu, não dá pra falar absolutamente nada. Eu sinto que essas coisas tem mudado por conta de luta, por conta de luta dessas pessoas que tão, e aí eu me incluo aí também, que tão abrindo espaço pra isso acontecer, então, né, o caso das convenções nacionais agora terem noite LGBT, terem noite preta, isso é fruto de luta, não é mérito individual de nenhuma pessoa, de nenhuma organização específica, mas de luta da comunidade que tá aí fazendo com que isso seja discutido, né, então vejo mudanças sim, mas vejo mudanças através de muito esforço, e é por conta disso que essas mudanças estão começando a acontecer, e a gente sabe, a gente percebe que as mudanças estão começando a acontecer porque as pessoas estão começando a se incomodar muito, né, a normatividade se incomoda muito, e quando elas estão se incomodando muito é porque realmente algumas coisas a gente tá conseguindo mexer ali.
Eu acho que, assim, eu gosto muito dos encontros, convenção, encontros locais, encontro LGBT, eu acho que as minhas referências antes de serem pessoas famosas que acompanham um trabalho e vejo uma técnica, mas de pessoas com quem eu troco e vejo a sensibilidade do trabalho, então as minhas referências tenho muita felicidade de dizer que são pessoas próximas, pessoas trans, pessoas não brancas, pessoas gordas que estão nesses ambientes também e trocando assim, eu sinto que cada um tem o seu trabalho artístico, mas a gente troca muito nessa pesquisa.
Olha, só, tem vários textos e coisas que eu já li, mas que eu diria que citaria como referência só a Hermínia mesmo, por enquanto, para não citar a auto-referência de Cia Fundo Mundo, mas acho muito legal o trabalho que ela vem fazendo e também a abertura que ela tem para conversar com as comunidades circenses, assim. Tem outras pessoas pesquisadoras também, mas acho que para citar como referência iria a ela.
A criatividade, o espaço de criação mesmo, as redes que tem se formado nesses lugares e essas são referências próximas, então acho que quando alguém rasga uma possibilidade ali, rasga no sentido de abrir esse caminho, parece que amplifica a potência de muitos outros mundos que podem ser criados e me encanta muito essa possibilidade de criar esses novos mundos.
Acho que as artes circenses têm essa potência, acho que a normatividade circense poda ela demais fazendo, né, ter só um único objetivo que é o super corpo, o super humano da super técnica e eu não estou falando que, ah, eu sou o anti-técnica, não é isso, mas que a gente tem uma possibilidade imensa, porque o circo pode agregar qualquer outra arte, qualquer outra forma de expressão e eu acho isso muito incrível, por isso que eu gosto muito de circo.
Eu acho que o primeiro de todos é o encontro com as pessoas e fomentar o debate e espalhar esse debate, acho que teve muitas questões que eu entrei mais em contato também.. tem debates que a gente leva e tem debates que a gente, que são levados até nós e eu acho que isso é muito importante essa troca, eu sinto que participar desses eventos faz com que esse debate seja continuado e a gente possa e enquanto comunidade circense, que não é uma coisa única e unívoca, né, eu não gosto muito de usar esse termo singular, mas enquanto comunidades circenses a gente consiga ir espalhando e sendo contaminado também por debates que tem em outras partes e sobre outras corporalidades que não são as nossas.
Bom, de uma maneira geral, as pessoas circenses tem muitas formas de trabalhar, eu trabalho mais com o edital público mesmo ou com venda direta para espaços e aí são situações em que precisa estar em grandes centros, né, eu venho de uma capital, agora estou em outra, sempre estive em capitais e eu trabalho assim, mas tem várias possibilidades, acho que uma coisa que falta muito é a gente enquanto circense se apoderar das ferramentas de produção porque é muito importante para conseguir dar continuidade para o trabalho.
Eu basicamente sobrevivo só de circo desde 2016. E aí só uma coisa também que é apresentar o mercado da aula também, né, são duas possibilidades aí, acho que isso se complementa, dependendo do lugar que você está, uma coisa complementa a outra e aí enfim, tem outras formas também, galera que faz rua, que faz sinal e tudo mais, que é uma outra forma de renda também, que não é o que eu faço, o que eu faço mais é aula, espetáculo e produção.
Ah, eu imagino um futuro mais diverso em que sejam os eventos, as convenções sejam mais acessíveis para pessoas e quando eu falo acessível tem a ver com gênero, tem a ver com raça, tem a ver com questões de acessibilidade de linguagem, acessibilidade para pessoas com deficiência e com pessoas com menor condição financeira também, acho que isso para agregar essas pessoas e não é só uma questão de dar oportunidade para elas, quando a gente agrega outras pessoas a esse contexto, elas também criam novas possibilidades de mundo e de desenvolvimento artístico e isso é incrível.
Mafê
Bom, prazer estar aqui, maravilhosa.
Eu sou Mafê, sou uma pessoa trans não binária, tenho 30 anos, eu tenho uma formação multiartística, trabalho com várias vertentes da arte, desde a música, o circo, o teatro, enfim.
E formações acadêmicas, você disse, também?
Na verdade, assim, eu não estudei universidade, né?
Eu fiz conservatório de música clássica. Por algum tempo, algum bom tempo da minha vida, comecei a estudar violino no projeto social, e aí eu fui pro conservatório, fiquei cinco anos no conservatório do teatro municipal, aí depois eu não aguentei mais, porque cinco anos foi muita coisa ali dentro, né, só nove anos de curso.
E aí eu, enfim, saí do conservatório, então minha formação, ela é mais de vivência, né, de trabalhos que eu faço, que eu vou explorando, enfim, até o circo, tudo isso, tipo, eu não estudei, necessariamente fiz aula, né, tipo, a gente vai nessa oralidade mesmo. Tipo isso.
Tá, então, é um rolê meio fragmentado, assim, porque eu comecei a, eu falo brincar com o circo, porque era tipo um projeto social lá no bairro, e aí eu ia com os moleques pra brincar mesmo, então eu não pensava que eu tava fazendo aula ou iniciando o circo, mas isso, tipo, tinha uns 13 anos, aí eu brinquei bastante nessa época, e aí sumiu o circo da minha vida, assim, eu fui.. conheci o violino, com, sei lá, 13, 14 anos eu fiquei ali brincando desse rolê de circo, tá, me aproximando desse rolê do monociclo, e aí com 15 anos entrou o violino na minha vida e eu fiz aquela imersão na música, assim, louca, sabe, a música me puxou, e aí recentemente, eu, não é aquela coisa que eu parei, parei, né, tipo, uma vez ou outra a gente dá uma brincada, porque fogo no rabo, né, fogo no rabo da porra, então tava sempre em contato uma vez ou outra, sei lá, jogando malabares, brincando com o monociclo, mas uma coisa não focada em treino.
Aí recentemente eu voltei, sei lá, vou colocar dois anos, assim, que eu tô um pouco mais envolvide na cena, né, tipo, vivendo o circo mesmo, então, tem um grande espaço mas com muitas camadas, né, eu acho que isso também traz uma absorção artística, porque as pausas também são consumo artístico, né, treino, é mais ou menos isso, assim.
Ai, gente, depois de uma semana, né, tentando explicar, Mafê de quê?
É, mas é só Mafê, teu nome?
Eu acho que assim, hoje eu me sinto um pouco mais com uma autoestima elaborada, tipo, uma conquista de autoestima por entender essa complexidade do gênero na minha vida, né, com muita pesquisa, muita, mano, muita porrada na cara, né, mas eu sinto assim, a minha perspectiva e a minha, aliás, a minha percepção, dentro disso, não com o que os outros acham, mas como eu tô, eu me sinto muito mais confortável e confiante comigo mesme, quase como assim, sem esperar o que os outros pensem, porque com relação aos outros é sempre um lugar desconfortável, uma coisa, tipo, a cisgeneridade renegando sempre os papéis de gênero, as funções, e a gente sempre tentando quebrar, quebrar as coisas.
Então, tipo, eu tento me sentir, assim, tento me empoderar, me acessar nesse lugar de, tipo, mano, não esperar o externo para que eu aconteça, sabe?
Então, esse rolê dos peitos, né, tipo, ai, caralho, o que eu faço? Tanto que até na minha performance, eu tava com um macacão e eu acho aquele macacão boladão e tal, eu nunca usei, e aí, vou usar, daí boto um sutiã e ele já desconfigura. Eu deixei ele do jeito que tava, lancei uma fitinha aqui e tal, mas, assim, existe um desconforto, né, porque o externo, ele sempre se firma muito bem firmado, mas eu tenho tentado deixar a minha presença ser maior do que isso, né, e que é muito custoso, porque eu no meu silêncio, é assim, desgaste pra caramba, né, o emocional abalado, se a gente não se, não se cuida no bastidor, aí é foda, então é uma complexidade mesmo, tipo, não é que a gente tá sempre confortável ou desconfortável, né, é um lugar, na verdade, assim, é um desconforto pela cisgeneridade, mas o que vem de mim é um lugar de me firmar, então eu tô mais presente dentro desse trato comigo mesmo, sabe? Tipo isso.
Eu vejo, assim, seria complexo, né. Eu vejo mudanças, sim, mas eu vejo muito estruturalidade, assim, as pessoas, elas mudam muito a capa e produzem muitos jargões, né, tipo, muitas.. mas elas não se interessam subjetivamente pela causa, então é uma mudança muito superficial, né, que é tipo, eu vou fingir que eu estou te acolhendo e você finge que você está se sentindo bem, eu sinto isso. Então, tipo, eu sinto uma mudança contextual mesmo, tipo, artística, não só do circo, mas ela é uma mudança muito sutil e muito superficial, frágil, frágil, frágil, tipo, e muito focada em muitas vezes, em.. o discurso de como é que fala?
Uma palavra muito usada.. de representatividade, né, então vamos acolher essa causa e tal, mas as pessoas, elas não estão preparadas, de fato, para acolher essas dissidências, né. Então é uma mudança meio.. mas sinto, não posso dizer que não, tipo, entre o processo de, por exemplo, de colonização e a colonialidade, ela está aqui com a gente, tipo, a mesma fita, eu penso, a gente vê mudanças, mas é uma parada tão estrutural, tão estrutural, que está introjetada na carne, né, então, não sei, é uma mudança muito sutil, né?
Então, isso daí é uma parada muito louca, porque, como eu falei, tipo, a minha pesquisa, a minha vivência de circo, ela é a brincadeira na rua, ela é, tipo, os moleques chegando na porta de casa falando, e aí Mafê, vai ter uma aula de circo lá na escola, quer colar? Pô, vamos!
Então, é, é uma coisa muito da oralidade da brincadeira dos moleques brincando na rua, e, como eu falei, o fogo no rabo sempre, assim, eu querendo sair, minha mãe não deixando, aí eu escapando pra ir pro rolê, então, eu tenho uma referência, eu poderia citar a maior de todas, que é a Antônia, minha professora foda, a primeira professora que deu aula pra gente lá no, no Fontinelli, escola do Jaraguá, no bairro que eu cresci, que é uma pessoa foda que levantava um corre do caramba, eu lembro que ela vinha da Leste pra dar aula na Zona Oeste, segurando num.. ela tinha uma questão no joelho, atleta também, né, mas aí já era senhora, tava com dificuldade e ela vinha com aquele cabo de vassoura lá da Leste pra poder dar, abrir o espaço na escola pra gente poder.. E ela lutava pra gente ter equipamento lá dentro, pra gente ter acesso, sabe, então a Antônia, tipo, assim, pode perguntar, pra uma galera, né, o Sete Claves também, o Anderson, monstrão, ela também foi professora dele, tem uma turma, assim, que tem ela como uma puta referência, eu tenho a Antônia como uma referência foda, porque eu não tenho essa coisa da tradicionalidade, eu não sei, saca, não estudei isso também, fui mais por esse viés da brincadeira, dos amigos, do erê mesmo, sabe, tipo, da, esse lugar da brincadeira, que é o como, eu acho que, pra mim, que é como tem que ser, então citaria ela.
Nossa, não, Vulque, não, não, tipo, eu não tenho tanto essa pesquisa, sabe?
Mas, inclusive, buscarei.
Tá, eu acho que me descobrir, sabe, me pesquisar dentro disso também, tipo, acessar minha loucura, minhas sombras, minhas poesias, né, porque eu sou uma pessoa muito nostálgica, intensa e trovadore, assim, sabe?
Esse rolê da poesia e da... Ah, eu acho que, apesar de todas essas coisas, o circo é um espaço que é muito possível, porque tem muito esse contato com brincar, sabe? Eu me sinto muito brincando. Então, é isso.
Olha, a minha primeira convenção, porque agora, minha primeira convenção, eu já tinha escutado falar, já tinha me programado pra ir em outras, tá? Essa é a minha primeira. Eu tô achando, tipo, uma experiência muito louca, assim, tipo, muito intenso, né? Eu acho que eu tô conhecendo isso agora, tipo, eu tô conversando com você aqui, eu sei que você já é convencionalista há um tempo, né? Então, a sua perspectiva é completamente diferente da minha. Eu tô, tipo, muito deslumbrade, achando tudo muito massa, tipo... Tudo muito lindo, tô muito encantade, né? Porque, assim, a criança saiu pra brincar no quintal, tá ligado? Ao mesmo tempo que eu avalio todas as complexidades, né? Enquanto pessoa trans e quanto dissidência no contexto, racializade. Então, assim, ao mesmo tempo que eu estou deslumbrade e curtindo muitas coisas, eu tô com o olho bem aberto, sacando muitas outras coisas, né?
Então, eu penso assim, é um encontro importante porque liga e conecta muitas pessoas, a gente consegue divulgar nosso trabalho, conhecer pessoas maravilhosas, né? Viver essa egrégora de circo, independente dos conflitos e das coisas todas, a gente consegue estar em conjunto, né? Então, eu acho que é um rolê bem importante. Acho que a gente tem que começar a pensar em propostas com mais suportes de subjetividade de contexto, sabe?
Tipo, pra comunidade mesmo, sabe? Pro vale! Sei lá. Porque, ao mesmo tempo que é importante, também tem a coisa que é prejudicial pra nossa autoestima, ter que lidar com certos tipos de coisa. Mas a situação em si, eu não posso nunca desassociar desse contexto.
A coisa do contexto, né? Tipo, pensar enquanto pessoa trans, não associar isso a essa causa.
O festival em si é maravilhoso, acho que é necessário. Ao mesmo tempo que a gente também tem que pensar em outras propostas, contrapropostas pra isso, né? Subverter certas coisas, criar outros espaços. Sei lá, com capacidade mais subjetiva mesmo. Porque eu falo da subjetividade que é um lugar que, assim, às vezes a gente tá falando e a pessoa não entende o que a gente fala. Então, né? Lugares com possibilidades de existência mesmo.
Necessário, necessário.
Tá. Eu tenho essa vivência muito plural com a música, né? Então, tipo, eu tenho mais vivência artística com a música. Como eu falei, né? Depois de um tempo a música me puxou e eu fui que fui que fui. E criei mais contextos musicais. Mas eu, tipo, comecei a explorar essa coisa do violino com o monociclo, né? E isso deu uma visibilidade, as pessoas se encantaram com essa possibilidade e aí eu comecei a lançar esse... Investi nesse número porque também é uma coisa que me desafiava. Eu adoro, né? Me desafiar. Então eu senti que esse é um número que instigou bastante. E aí com isso abriu algumas portas. Abriu só algumas portas.
E então, assim, pra esse momento da minha vida acho que tem, como eu falei, agora é pouco, né? Mais ou menos uns dois anos, assim, de estar pesquisando, de estar vivendo. Então recentemente eu tenho me envolvido mais com trabalhos voltados pro circo. Através de editais, né? Então isso também já favorece e o corre porque, assim, na independência, na raça é osso. Então tem sido, nesse momento, tem sido frutífero e axé, sabe? Tipo, tem sido bom, né?
E eu tenho me divertido também com os projetos que eu tô me envolvendo. Porque eu acho que isso é importante pra caramba, né? E é isso, tipo, tem acontecido, sabe?
Não. Não, nesse momento não.
Apesar de estar, né, de estar sendo um momento... Como eu falei, a música não sai daqui porque é onde que eu firmei mais um ponto, sabe? Tipo, criei mais conexões e mais rede, né? Mas só com o circo não conseguiria, né?
Ah, o futuro circense, eu imagino... Eu tenho visto muitas coisas aqui na convenção que eu vejo que é novidade pra muitas pessoas, né? Tipo, muitos experimentos e... Eu vejo uma transformação mesmo, assim, de virada de movimento, sabe? Então eu penso... Ah, eu penso essa pluralidade, né? Acho que com muita luta, muito... A gente galgando ali, mas muitas coisas novas. As pessoas pretas entrando, né? Porque eu acho que... Palhaço preto, tipo, uma palhaça preta. Passou aqui agora, inclusive, a Ana do Pé Vermêi, né? E a Ana e Mone, tipo, pessoa trans, né? Então eu vejo, uma coisa que... Lembra da mudança que você perguntou? Essas coisas são detalhes, né? Eu sei que essas pessoas estão entrando por uma porta bem estreitinha, mas tá chegando. Então eu penso que é isso, tipo... Um espaço sendo criado pra pessoas dissidentes e novas modalidades, né? Novas performances, um novo olhar, né? Sem perder a essência, né? Porque a galera acho que muitas vezes fica com medo de perder a essência e tal. É isso, eu penso... Eu aspiro por isso, né? Essa pesquisa afrocentrada, transcentrada, né? LGBTQIA+, tudo, rolê todo. Acredito e quero isso.
Porque eu me vejo muito em espaços cis, sabe? Tipo, minha entrada é muito por esses espaços cis. E eu não fico tão feliz com isso, sabe? Apesar daquela dualidade, né? Eu fico feliz porque tô trabalhando, tô me envolvendo com coisas interessantes. Mas ainda é um espaço muito cis, muito branco. Então eu aspiro por esse lugar com possibilidades, com janelas abertas, portas. Pra gente mesmo conseguir botar, dar o nosso nome e falar de poesia, sabe? Falar da flor, falar do... Tocar uma música na leveza também, não só militar, né? É isso que eu quero, caralho.
Mone Melo
Sou Mone Melo, tenho 31 anos. Minha formação artística, basicamente, vem da rua. Comecei a pesquisar dança, teatro, capoeira ainda na infância, nos projetos sociais. E o teatro de rua me pegou muito forte. Em 2010, comecei a pesquisar palhaçaria junto com minha irmã. Então a gente iniciou esse processo ao mesmo tempo. E num período em que não tinha tanto acesso, a gente não tinha acesso à internet no lugar que a gente morava. Então foram experimentações caseiras, muito autodidata e partindo da observação da comicidade cotidiana. Da nossa família, das pessoas, principalmente do interior, que era o nosso contexto. Então nossa pesquisa é muito por aí, dessas pessoas.
Iniciei o estudo dos malabares em 2017, porque eu queria muito jogar faca. E aí queria jogar facão, comecei a pesquisar. E daí fui veredando cada vez mais para os objetos de risco e a minha palhaça foi junto nesse rolê, se apaixonando cada vez mais pelos objetos de risco.
Fora da área artística, minha formação é em marketing. E o que acaba ajudando muito na área artística também, tem formações em produção cultural. E atualmente sou ciclo-viajante.
Tenho vivido o nômade pelo Nordeste, junto da minha irmã, levando o nosso circo, principalmente pelas zonas rurais e periféricas. Isso, carregando tudo que a gente tem e precisa na garupa e estrada afora.
O que mais sobre mim?
Sou uma pessoa não binária, que graças a todo o movimento, articulação e encontro da comunidade LGBT, que eu fui me entender nesse lugar até recentemente, talvez nos últimos quatro anos. Antes eu achava que eu era uma mulher com defeito.
Não sabia que tinha uma outra possibilidade de existência, só achava que eu tinha um defeito muito grande, tinha alguma coisa muito errada comigo, até entender que só não é. Sou uma pessoa que me lê com muita facilidade como uma mulher cis. Entendo isso como um lugar muito delicado dentro do movimento, por me trazer uns privilégios, que eu preciso ter muito cuidado de receber essa leitura. Então como eu transito dentro do movimento da sociedade com esses privilégios e o que fazer com isso. Então recebo essa leitura atualmente, mas entendo que é transitório como tudo na vida, vamos ver como serei nos próximos anos.
Sobre mim basicamente é isso.
Cresci em Juatuba, Minas Gerais, que é uma cidade pequena na região metropolitana. Cresci num morro, num contexto periférico rural. E por isso que a nossa companhia chama Pé Vermêi, que era um lugar de muita poeira. E a galera do centro ficava tirando a gente de pé sujo, pé vermêi, ficava fazendo bullying e a gente se apropriou desse nome. E hoje em dia até as pessoas da nossa região falam, se tratam como pé vermêi de uma outra forma, a partir dessa nossa apropriação também.
Meu espaço principal de trabalho é a rua nos últimos anos. Tenho trabalhado muito no sinal, trabalhei já muito no sinal e estar em lugares como esse aqui da convenção, acho muito importante pela questão dos contatos e que conhecer outras pessoas, pessoas que a gente admira e só conhecia pela internet, e que outras pessoas também conheçam o que a gente está produzindo, que eu entendo que é importante. Mas também entendendo que meu lugar mesmo de existência de expansão é a rua e não dentro desses eventos. Minha arte não é para ser apresentada exclusivamente nesses lugares, é mais para a rua é para estar perto do povo, da galera em situação de rua, nas feiras e do cotidiano da cidade, das zonas rurais, é realmente o que eu gosto.
Tem um espetáculo junto com a Ana, que é a “Trem Bom é Coisa Boa”, a gente apresentou um pedacinho dele aqui, que foi a cena do sorteio. Esse espetáculo surgiu no contexto de pandemia, a gente já estava a itinerante, mas não de bicicleta e aí bateu a pandemia, a gente simplesmente não tinha lugar para morar. Ficamos numa situação bem precária, morando em alguns lugares, a gente chegou a morar numa fazenda abandonada, na Serra da Canastra. Frio, desgraçado.
Chegou um momento que a gente precisou voltar para a casa da nossa mãe. Que é um espaço bastante adoecedor e aí ficamos lá por seis meses. É uma família tradicional mineira bolsonarista. E nesses seis meses a gente completamente sem recurso, sem dinheiro, a família também passando alguma dificuldade. E quando deu a primeira abertura da pandemia, eu e a Ana vimos uma necessidade de ir para a rua, porque lá não pegava internet, a gente não estava conseguindo participar das coisas online que estavam acontecendo. Falei com ela, minha irmã, vamos para a rua, vamos pegar o que tem. A gente fazia outros trabalhos, até então não tinha um espetáculo. E aí a gente juntou tudo que tinha e condensou no espetáculo, e começamos a ir para a rua da nossa cidade, para a praça.
A gente teve que passar por um curso da vigilância sanitária, escrever um projeto para a prefeitura, para ter autorização para passar o chapéu na feira. no contexto de pandemia. E o chapéu era tipo 60 reais, 40 reais. E a gente lá batalhando. Também entendendo que era a construção de uma coisa nossa.
Aí, a gente foi lapidando esse espetáculo e depois que começamos a viajar de bicicleta, ele foi se fazendo. Então a rua dirigiu o nosso espetáculo, a gente criou aquela pegada.
Nosso picadeiro foi a gente que fez, o figurino, juntou vários figurinos que não deram certo e construiu aquele. Então é um trabalho bastante autônomo.
A rua dirige, a rua dá o tom. O contexto da viagem que mostra o que dá para levar. O que dá para entrar no espetáculo e não, ou não. E aí, logo depois desse tempo, veio Aldir Blanc e a gente conseguiu passar numa do estado e a fez presencial. Realizamos um projeto presencial no meio da pandemia, com os cuidados e tudo. Também para a galera que não tinha acesso à internet, como a gente. E com esse recurso a gente se mudou para o Recife. E depois de lá partimos para sair de bicicleta.
É isso, basicamente.
Comecei em 2010, já vindo do contexto do teatro de rua e da dança e aí comecei a me aproximar da galera do sinal. Então ali já me atraiu muito e na época eu trabalhava com contação de histórias, tive a oportunidade de fazer um curso de contação de histórias e lá conheci figuras de palhaços de hospital e me encantou aquelas figuras. Aí nesse momento já entrei e Ana também junto, a gente como dupla já começamos a pesquisar a palhaçaria nessa época, então entramos para o circo pela palhaçaria.
Depois vieram as outras pesquisas.
Meu corpo tem passado por muitos processos, como muitos de nós. E eu sinto meu corpo como algo visado dentro de um padrão que na verdade eu não pertenço. Então o meu corpo me coloca num lugar que eu não existo lá. Eu comigo me sinto confortável em muitos aspectos com o meu corpo. Um dia eu vou tirar os seios quando eu tiver condições, que me gera disforia.. Já tive o momento de precisar usar faixa. Em outros momentos eu já consigo não usar. Passei um bom tempo sem conseguir usar roupas com marcação de gênero. Aí a pessoa sem grana para também trocar o que tinha, passar momentos de não sair de casa porque não conseguia vestir o que tinha. Mas nesse momento eu entendo que o meu corpo me coloca num lugar padrão que eu não pertenço e as pessoas me leem nesse lugar padrão. E nesse momento aqui específico eu estou muito sem energia para poder ficar ensinando as pessoas que eu não estou nesse lugar, então se me falam “ai você é mulher”, eu:... (silêncio). E aí eu tenho a grande sorte de ter a Ana comigo que é uma pessoa extraordinária. Acho que se toda pessoa trans tivesse na família alguém como a Ana seria tudo muito melhor, ela chega muito junto, me protege, briga e tudo mais. Então estou nesse momento com o meu corpo. De também entender socialmente o que é esse lugar de ter essa leitura padrão e quais cuidados ter com isso. Como tem que ter também na questão da branquitude, então entendo lugares de privilégio desse corpo branco padrão, mas também como me dói que me colocam nesse padrão cis que eu não pertenço.
Então é uma dor acompanhado de um privilégio que eu fico sempre tentando entender o que fazer com isso.
Muitas mudanças. Deveriam ter sido mais, com certeza. Mas entendendo que é de muita luta, de muita gente. Que começou há muito tempo já como você, e muitas outras, muitos outres que passaram por coisas que a gente nem imagina e lutaram muito para essa transformação que antes tarde do que é mais tarde, mas entendendo que ainda tem muito pela frente. Muito, muito pela frente.
O circo ainda é muito hétero cis normativo e reflexo da sociedade, então é a luta para mudar o contexto e isso vai enveredando no circo. Mas percebo sim. Quando eu me apresentava, me expressava no mundo como uma mulher cis sofria toda a questão do machismo ainda. Sofro, né? Mas percebia muito mais forte o machismo, principalmente no malabarismo também. na palhaçaria eu passei por situações terríveis assim, os machos vim reduzir nosso trabalho, falar que o que a gente fazia não era aquilo, não era palhaçaria. “A gente vai no circo volante, não coloca o nariz não, porque o circo volante é muito tradicional, você não pode desrespeitar o festival”, e aí coisas do tipo. Eu e a Ana estamos há muito tempo, esses 12 anos, na labuta. Falando muito, trabalhando muito. Fizemos muita coisa de graça como muitos de nós. E há pouquíssimo tempo a gente começou a ter visibilidade até do lado, em Belo Horizonte, agora em outros cantos. Nunca conseguimos participar do circo volante. Na vez que rolou de participar e entrar num cabaré, foi um machismo horroroso assim. E aí decidi não ir, foi um ano que várias pessoas não foram. E tem essas camadas, né?
Todo o machismo, toda a transfobia. Entendendo que é essa luta. Essa galera que já está aí há muito tempo. Lutando bravamente para ter alguma mudança. Mas sim, está acontecendo. Passos lentos, mas está acontecendo, tem muito o que fazer ainda. E sigo aí nessa observação das minhas responsabilidades também, de seguir o que seguir fazendo com as posturas e como contribuir. Tem trabalho ainda, né minha gente? Muito ainda.
Minhas referências circenses são principalmente brincantes da cultura popular, me trazem muita referência. Os bêbados da rua são minha grande referência, minha galera total, galera da rua. Agora, dentro do contexto artístico, dentro da cena circense, você é uma referência, a Cia Fundo Mundo é uma referência, tem palhaças que são grandes referências também, Odilia é uma referência, Fran do Asfalto, quem mais? Dagmar é uma grande referência, tanto no faquirismo quanto na palhaçaria, então tem muitos filhos.. Ana, minha irmã, sem dúvida, talvez minha maior referência, talvez não, é minha maior referência, com certeza.
E muitas outras, alguns caras também, um pouco menos porque também são minhas referências, mas um pouco menos por entender a facilidade deles chegarem na qualidade artística que tem, mas tem por exemplo o palhaço Sequinho, é uma referência pra mim, Gambiarra do Pernambuco, referência, acho que é por aí.
Bibliográfica, eu gosto desse livro da Lili Castro, esse livrinho, eu esqueci o nome do livro, tem umas bolinhas assim na capa (Palhaços: Multiplicidade, Performance e Hibridismo), mas a maioria dos livros que eu já li eu detestei, vai dando um nó né, ou por ser muito eurocêntrico, ou por apagar muitas identidades, ou por só direcionar a potência do circo a um padrão de pessoas, e sinto falta de mais referências bibliográficas que realmente contem a história, a história que é né, que fale sobre todo mundo, que fale sobre as identidades plurais, que falem sobre o que realmente rolou e que não condicionem só a história do circo a algum homem branco, cis.. precisamos de mais, precisamos de mais.
O circo é como um remédio para mim, mais do que fazer para as pessoas eu faço por mim primeiramente. Eu estou a uns 20 anos, apesar de ser uma pessoa quase jovem, passado de jovem a pouco tempo, mas eu já estou a uns 20 anos lutando para viver de arte, e sempre nesse corre de ter que fazer outras coisas para ganhar dinheiro e tal, e aí nesses últimos anos que eu falei foda-se, eu realmente não vou mais pegar bico, outra coisa, vou fazer circo e só, enfim, todo esse tempo que eu precisei fazer outras coisas por questão de sobrevivência, eu e Ana não somos herdeiros, não tem ninguém que banca a gente, enfim, nosso rolê de bicicleta não tem nenhum tipo de patrocínio. Então todas as vezes que eu tive que sair por causa de dinheiro, fazer outras coisas, sempre foi muito adoecedor, então o circo, em especial, mais do que o circo, o circo de rua é bálsamo para a minha existência, fazer isso, cura coisas aqui dentro, que eu entendo que são de outros tempos, assim, e me dá muita força para a vida no geral, apesar de toda a merda, todo o perrengue, de tudo que a gente vê dentro do movimento de podre, e dessa dificuldade de ser artista independente no Brasil, ainda assim, estar na rua com o povo, com os bêbos, com a galera pobre, com o povo da feira, que são as minhas pessoas, me dá vida. Eu sei que se eu não tivesse enveredado por esse caminho, eu já tinha desencarnado, não ia ter para quê. E aí nesse contexto todo eu entendo também a importância de estar fazendo isso para o movimento geral, como dá para colaborar para a construção desse circo necessário, dessa luta dentro do circo, isso, o circo para mim é bálsamo, apesar de ser muito adoecedor em vários aspectos.
Minha primeira Convenção Brasileira, e entendo muito a potência dessa coisa do network, das trocas, de acessar outras modalidades, de ver trabalhos, de encontrar pessoas, mas também estou vendo o tamanho do ego, bem um rolê de ego bem gigante, “de 10 convenções”, ‘20 convenções”, porque eu quero saber o depois, o que isso traz de grana mesmo para a galera que está no corre, o que colabora, enfim, estou meio me entendendo com isso, por exemplo, uma pessoa que está vivendo no nordeste, ou a galera que é do nordeste e do norte, que tem que se deslocar para uma outra região e paga o mesmo valor de quem vai gastar muito menos para chegar aqui, tem coisas que eu achei muito...
Não sei se eu vou voltar numa convenção brasileira, talvez se me convidarem e me pagarem eu volto, porque é isso. Mas sim, entendo também a importância desse lugar de encontro e fruição e desenvolvimento e de entendimento de todas as merdas que rolam, para a gente ir se juntando e podando e passando facão na raiz dessas coisas.
Agora festivais, festivais.. Eu acho que talvez nos últimos 5 anos eu vi uma importância muito grande lá do rolê dos festivais das mulheres palhaças, mais, né? mais, enfim. Essa última década e essa formação dos festivais de mulheres palhaças, que foram nesses festivais que eu tive acesso às primeiras oficinas e que me ajudaram a entender muita coisa e que depois também se tornaram lugares adoecedores, eu já não conseguia mais habitar e fui me retirando. Mas também entendi que foram muito necessários pra construção de uma linguagem pra além da linguagem do palhaço cis, hétero que faz piada transfóbica e tudo mais, então vejo uma grande importância nos festivais mas precisa de renovação, né? Essa coisa de só o festival feminino já tem alguns que já estão se entendendo. E da necessidade de festivais de linguagens diversas também, né? De identidades diversas pra esse circo nosso também, né?
o circo trans, o circo não binárie e aí, cadê, bora festivais disso? Não foi importante esse movimento dos festivais femininos? Então que vem essa onda de festivais trans, não bináries e tudo mais pra... pra essas construções também, né? Pra gerar várias coisas, pra gerar biografia
pra gerar livros, pra gerar filmes, pra gerar muitos espetáculos, pra gerar oficinas, então isso acho que tem suas importâncias. Eu tô meio doída aqui com a coisa da convenção do ego todo que eu tô vendo aí, mas entendo a importância, mas também entendo que a galera que produz convenção há mil anos tem que entender que não é sobre eles a convenção é muito maior do que o umbigo dessa galera, a convenção não é pra falar sobre o cenário nacional do circo? Então que fale realmente e respeite o cenário nacional do circo e não só fale sobre o ego deles, das pessoas que fazem convenção há noventa anos, sobre o circo, que é muito maior do que essa galera. Pessoa bolada.
Padrão, né? Corpos padrões, pessoas.. na maioria pessoas que têm uma condição financeira que conseguem ocupar as vagas e chegar nas coisas. Tem um rolê ultimamente que tem me batido muito forte, tem muitos amigos que vivem em itinerância e aí tem as famílias que se colocam bastante como “ah, descolados, famílias do circo” mas é uma família tradicional, né? muitas vezes pessoas brancas, com filhos brancos e que estão em tudo estão em todos os sesc’s e tal, e as famílias não tradicionais? E as pessoas não brancas? E as pessoas de gênero dissidente? Então é isso, né? É completamente desigual e na rua é muito forte também o tanto que os corpos brancos são muito mais.. estão no lugar da.. se fosse um corpo branco na rua é uma resistência, um corpo preto ali na rua passando chapéu é um pedinte.
Toda essa merda é escrachante dentro do nosso mercado de trabalho também. Estou num momento também de entender muito a dificuldade de pessoas nômades dentro desse cenário desse mercado de trabalho pra acessar editais, é uma grande dificuldade pra quem vive nômade e... tô no momento de me organizar com outras pessoas pra cobrar mudanças nesse sentido também, vive nômade, especial pessoas da bicicleta que é um outro contexto muito específico também.
Mas sim, é um mercado desigual como a maioria dos mercados da nossa sociedade, vão valorizar as pessoas brancas, cis, padrão, classe média ou burguesa e... e que acha que passar o chapéu na lona, na noite e tal, “não precisa”, porque tá em todos os sesc’s então realmente não precisa, agora quem precisa ir pro sinal sabe que precisa. É isso, é uma grande bosta né, nosso mercado, uma grande bosta.
Eu imagino que tenham convenções que realmente mostrem o que é o cenário nacional do circo. Eu imagino festivais muito mais diversos que consigam expressar essa grandiosidade e fazer essas trocas de forma real. Eu imagino um mercado que valorize realmente as profissionais, os profissionais e não os padrões e os contextos que essas pessoas vivam. Eu imagino que as linguagens possam ser compartilhadas com mais generosidade entre as pessoas que vivem na área. E eu imagino menos ego e mais circo mesmo e... E imagino, desejo fortemente que as pessoas pretas, as pessoas trans possam só fazer circo sem ter que estar ali ensinando para a galera como tratar a gente.. possam só fazer circo em paz e viver disso e ter paz.. Longe né? Af maria.. pois é.. porra.. mas há de chegar..
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